Educação, promoção e vigilância em saúde: integração entre saberes e práticas com movimentos sociais camponeses

Authors

  • Maria do Socorro de Souza Fundação Oswaldo Cruz
  • Jorge Mesquita Huet Machado Fundação Oswaldo Cruz
  • Antonia Sheila Gomes Lima Fundação Oswaldo Cruz
  • André Luiz Dutra Fenner Fundação Oswaldo Cruz
  • Gislei Siqueira Knierim Fundação Oswaldo Cruz
  • Virgínia da Silva Corrêa Fundação Oswaldo Cruz

DOI:

https://doi.org/10.51723/ccs.v28i02.217

Abstract

INTRODUÇÃO
A Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas
(PNSIPCFA), aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e pactuada na Comissão
Intergestores Tripartite (CIT) para atender às pressões e reivindicações dos movimentos sociais
pelo direito universal, integral e equânime à saúde 1 , foi formulada num espaço de gestão
participava do Ministério da Saúde (MS), o Grupo da Terra. Mais do que uma medida formal das
instâncias de controle social e gestora do SUS, pode ser interpretada como um compromisso ético firmado entre gestores, trabalhadores e
movimentos sociais para enfrentamento das iniquidades em saúde que acometem grupos
populacionais e indivíduos com largo histórico de desigualdades e negação de direitos, como são as
populações do campo, da floresta e das águas.

O que define a identidade dos povos e populações do campo, das florestas e das águas? Que
significados e sentidos de equidade em saúde tem‑se atribuído a esta política? É possível articular as
lutas populares e as pedagogias dos movimentos sociais com a educação em saúde para produzir
novos conhecimentos e novas metodologias de trabalho no campo da vigilância em saúde e da
promoção da saúde no âmbito do SUS?

Este artigo discorrerá sob possibilidades teórico‑metodológicas e significados e sentidos que a
educação, a vigilância e a promoção da saúde podem imprimir ao processo de implementação
da PNSIPCFA.

No primeiro tópico do artigo, descrevemos as estratégias metodológicas das experiências educativas utilizadas no Projeto de Formação de Lideranças para a Gestão Participativa na implementação da PNSIPCFA, ressaltando as pedagogias e o protagonismo dos movimentos sociais. No segundo, abordamos as múltiplas identidades e diferenças sócio‑culturais‑ambientais das populações do campo, das florestas e das águas. No terceiro, o sentido etimológico de equidade em saúde ainda pouco compreendido no âmbito do SUS e no Brasil. No quarto tópico, discorremos sobre o papel emancipatório da educação em saúde em duas perspectivas: a primeira da educação popular e sua interface com os princípios e diretrizes da educação permanente. No último tópico, abordamos a discussão sobre o papel da vigilância em saúde e da promoção da saúde, de incidir sobre os processos de determinação social que caracterizam o padrão de saúde‑doença das populações do campo, da floresta e das águas. De modo transversal, o artigo aborda ainda uma visão de gestão participativa democrática em defesa do direito universal à saúde e do SUS.

Os resultados aqui apresentados tiveram como substrato estudos literários, análises de documentos oficiais e de relatórios das atividades formativas,
discussões entre os sujeitos envolvidos com a experiência do projeto. Como relevante, mostra que a educação em saúde, quando assume a
perspectiva integradora de saberes e práticas e de emancipação dos sujeitos envolvidos, pode produzir novos conhecimentos em saúde coletiva e novas
metodologias de trabalho no campo da vigilância em saúde e da promoção da saúde no âmbito do SUS, apontando, de maneira transversal, possíveis
caminhos para a gestão participativa e de mudanças no modelo de atenção à saúde. Mostra também ser uma importante ferramenta de reforço às estratégias
de representação política e de aquisição de poder de povos e comunidades que apresentam histórias comuns de dominação colonial e de privação de
direitos, valorizando suas múltiplas identidades e diferenças sócio‑político‑culturais e ambientais, acumulando forças de transformação social no nível
dos territórios e das comunidades.

METODOLOGIA DA EXPERIÊNCIA EDUCATIVA
A concepção do projeto nasce num espaço técnico‑institucional do MS, especificamente o Grupo da Terra, a partir de discussões em grupos e reuniões
pedagógicas envolvendo os movimentos sociais, a equipe do Departamento de Apoio à Gestão Participativa do Ministério da Saúde (DAGEP/
SEGEP/MS), a equipe do Programa de Promoção Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT/FIOCRUZ) e a Escola Fiocruz de Governo (EFG/Brasília).
O objetivo do projeto foi criar condições para a implementação da PNSIPCFA nos estados e municípios, buscando atender às demandas de
formação e qualificação de trabalhadores e gestores do SUS, profissionais, técnicos, conselheiros de saúde e lideranças populares que atuam no campo
da saúde, ambiente e trabalho.

A Escola Fiocruz de Governo, em parceria com a Escola Nacional de Formação da CONTAG (ENFOC) e as escolas de formação do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), foi responsável pela elaboração dos módulos para a formação dos sujeitos participantes, assim como suas
respectivas cargas horárias, objetivos, metodologias, conteúdos programáticos e informações que foram geradas durante o percurso formativo.
Entre os anos de 2014 e 2016 a experiência educativa ganhou dimensão nacional e local, envolvendo a formação de 1.441 participantes.
As atividades realizadas alcançaram o número de 1.332, sendo 109 oficinas e cursos territoriais, além de outras modalidades, como: diagnósticos
participativos, seminários temáticos, cursos livres, cursos técnicos, atividades tempo‑comunidade, articulações interinstitucionais, participação
em congressos, sistematização de processos educativos, ação planejada em territórios, além de monitoramento e avaliação das ações durante o
período de execução do projeto.

As experiências educativas assumiram diferentes estratégias, a depender da pedagogia dos movimentos sociais, dos contextos e dos objetivos
e resultados pretendidos. A CONTAG optou pela estratégia de formação conjunta entre Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras
Rurais (MSTTR), gestores e trabalhadores de saúde em serviço no SUS, com destaque para os trabalhadores da atenção básica e da vigilância
em saúde do trabalhador e vigilância em saúde ambiental, e pela elaboração conjunta de planos de ações a serem desenvolvidos em territórios
localizados em 18 estados, nas cinco regiões do país, visando facilitar o processo de implementação da PNSIPCFA. Os cursos tiveram como produto
final um plano de ação e uma agenda de saúde para cada estado envolvido no projeto, ressaltando as temáticas: fortalecimento da agricultura
familiar agroecológica e orgânica; qualificação da participação do movimento sindical nos espaços de controle social e gestão participativa no SUS;
redução dos impactos dos agrotóxicos na saúde e no ambiente; saúde do trabalhador; e acesso da população do campo, da floresta e das águas na
política de saúde.

A formação do MMC trabalhou com a problematização de três questões: gestão participativa e controle social do SUS; promoção da saúde por meio da produção de alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos, reafirmando o projeto de agricultura camponesa agroecológico, e de ações de enfrentamento aos problemas de
saúde decorrentes do uso intensivo de agrotóxicos; e o uso das plantas medicinais, valorizando as práticas e o saber popular tradicional em saúde
acumulados pelas mulheres camponesas. O processo de formação ocorreu em 20 cursos e quatro atividades nacionais, envolvendo 20 estados, nas cinco regiões do país.
O MST optou por trabalhar com a sistematização de experiências de educação profissional em saúde a partir dos cursos promovidos pelo
Coletivo Nacional de Saúde do movimento, sendo estas: Curso de Técnico em Saúde Comunitária de Veranópolis – RS, com duas turmas ocorridas
entre 2004 e 2009; Curso de Técnico em Saúde Comunitária da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), realizado de 2006 a 2009; e o Curso de Práticas Integrativas e Tradicionais em Saúde para moradores das áreas da reforma agrária do Estado do Rio de Janeiro, ocorrido de 2006 a 2007. Foi produzido, em parceria
com instituições de ensino e pesquisa, o registro histórico e um inventário de informações sobre as experiências, contribuindo com o debate sobre o
papel da educação permanente e continuada do profissional de saúde no SUS, integrando saberes e práticas populares e técnico‑científicas para
orientar o trabalho desses profissionais junto a estas populações.

O MLT teve seu processo formativo baseado na pedagogia da alternância, norteado por três eixos de ação: saúde, solidariedade e sustentabilidade.
Baseada no viver e conviver com a natureza, seja nos sertões nordestinos ou nas longas temporadas de chuvas na Amazônia, as ações
educativas assumiram os princípios da educação popular em saúde e da economia solidária, como a solidariedade, o compartilhamento e a troca de saberes e práticas, e o convívio no coletivo. Os conteúdos e as estratégias educativas referenciaram‑se na luta pelo direito à saúde com equidade, na garantia de acesso ao SUS, no
respeito às práticas de cuidados tradicionais, na importância da produção agroecológica, na defesa da segurança alimentar e no direito à alimentação
saudável. Os cursos do MLT aconteceram em 10 estados de quatro regiões do país.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
O que define a identidade dos povos e populações do campo, da floresta e das águas?

Ao referimo‑nos aos povos e populações do campo, da floresta e das águas, estamos reconhecendo e respeitando as múltiplas identidades e
diferenças sócio‑político‑culturais‑ambientais dos sujeitos que assim se autodenominam, sejam estes, conforme o texto da política: indígenas,
camponeses, agricultores familiares, trabalhadores rurais assentados, acampados, assalariados (em regime permanente ou temporário) que residam
ou não no campo; comunidades de quilombos; populações que habitam ou usam reservas extrativistas; populações ribeirinhas; populações atingidas por barragens; e outras comunidades tradicionais do campo e floresta.

Trata‑se de sujeitos coletivos que, após séculos de dominação sociocultural imposta, de exploração econômica e de expropriação de seus territórios
de pertencimento, utilizam novas narrativas de subjetividades para resgatar suas histórias originárias e produzir novas consciências de classe,
de raça e de gênero. Essa tomada de consciência tem posicionado esses sujeitos a construírem novas formas de luta política, materializadas na
construção de novos projetos de vida comunitária, articuladas em nível local, nacional e global. Uma luta contra‑hegemônica ao poder das elites agrárias do país, herança da dominação colonial que ainda persiste no meio rural brasileiro, hoje denominada de agronegócio.

Historicamente, as lutas camponesas denunciam as mazelas decorrentes do avanço do capitalismo no campo, e se posicionam criticamente contrárias
ao modelo de desenvolvimento vigente no país desde a formação social brasileira. Este modelo é concentrador de poder e de terras, explorador da
força de trabalho e da renda dos trabalhadores, degradador dos recursos naturais e excludente socialmente, e impõe uma única concepção de
desenvolvimento e modo de vida social às pessoas, comunidades, populações, povos e mesmo ao planeta.

Tentando aproximar o sentido político dessas lutas populares da teorização feita por Homi Bhabha 2 sobre identidades culturais, diríamos que
trata‑se de práxis política, educativa e cultural que possibilita a tomada de consciência e a posição de sujeitos singulares e coletivos – sejam estas
de classe, de raça, de gênero, de geração, de orientação sexual ou geopolítica, indo para além das narrativas de subjetividades das identidades
originárias e iniciais, mas destinada a produzir novas articulações e novos atos políticos que possibilitem definir a própria ideia do que seja a
vida em sociedade.

Uma idéia do que possa vir a ser esta nova forma de vida em sociedade está incorporada ao conceito de buen-vivir; que na tradução autoral
dos movimentos sociais, a partir da realidade brasileira, ganhou o nome de melhor viver no campo, nas florestas e nas regiões aquíferas. Ainda que seja uma metáfora a ideia de buen-vivir, Tortosa 3 defende a tese de que saber o que é o mal desenvolvimento ou o malvivir ajuda a definir o que é buen-vivir e por onde começar a construí‑lo. Para o autor, o mal desenvolvimento ou o malvivir é a situação habitual do sistema capitalista mundial, agravado pelas crises econômica, ideológica, energética, alimentar, ambiental e democrática, sem as quais não há saída sem a participação efetiva da sociedade.

Considerando estas perspectivas político‑teóricas, entendemos que as lutas populares e as experiências sociais protagonizadas pelos
movimentos sociais do campo, da floresta e das águas - em defesa da reforma agrária e da agricultura familiar camponesa e agroecológica,
da seguridade e promoção social em contraposição à violência dos direitos humanos, da liberdade social e política para participar, opinar e
decidir, e do respeito às múltiplas identidades e diferenças socioculturais – apresentam‑se como possibilidades autônomas, de nível territorial e
global, de enfrentamento à crise do capitalismo mundial em várias dimensões. A perspectiva é que estas lutas e experiências possam assumir
escalas maiores para que as necessidades humanas básicas desses povos e populações sejam equacionadas, e tornem a vida no campo, na floresta e nas águas mais humana, ou ainda, saudável e sustentável.

QUE SIGNIFICADOS E SENTIDOS DE EQUIDADE EM SAÚDE TEM-SE ATRIBUÍDO A ESTA POLÍTICA?
A ideia do que seja equidade em saúde para as lideranças dos movimentos sociais e os gestores e trabalhadores do SUS, merece uma mediação
conceitual. Observando‑se as narrativas das lideranças populares que participaram da experiência aqui analisada, podemos interpretar
o uso da palavra equidade como algo que traduz o ideário de igualdade social e de justiça sócio‑ambiental, apontando para além do acesso às ações e serviços de saúde, sem que isto signifique a anulação da importância de superar as barreiras que dificultam o acesso dessas populações ao SUS.

O sentido que queremos reiterar é que estes povos trazem, do seu passado e em seu presente, marcas da estratégia de dominação e exploração colonial,
mas que lutam para reescrever sua própria história e mudar sua posição no mundo. Já a observação que fazemos dos discursos proferidos por gestores e trabalhadores do SUS, politicamente formulados a favor desta política de equidade, é que os mesmos tendem a restringir seu significado, exclusivamente, à ideia de acesso a bens e serviços de saúde mediante a eficiência da gestão pública. Esta ênfase discursiva aparece, sobretudo, nas falas de trabalhadores e gestores do
SUS que atuam no âmbito da atenção básica, por ser esta a responsabilidade prioritária da gestão municipal. Sabedores da limitação deste nível
de assistência apostam, ainda, na regionalização do SUS como estratégia organizativa do sistema para melhor atender às necessidades de saúde
da população, sobretudo as mais complexas, reduzindo, assim, as agudas disparidades locorregionais de conformação do SUS no interior
do Brasil.

Do ponto de vista pragmático da gestão pública, esta visão, ainda que insuficiente, faz sentido se consideramos que estas populações estão
localizadas predominantemente em municípios com até 50 mil habitantes, onde existe pouca infraestrutura, menor rede de serviços públicos instalada e os mais baixos indicadores de saúde, comparativos aos moradores das cidades, sobretudo das regiões norte e nordeste.
Nota‑se, entretanto, a partir da observação empírica e análise dessas narrativas, uma situação de indefinição ou mesmo de ambiguidade entre
os significados, discursos e práticas do que seja o conceito de equidade; o que pode dificultar decisões e avaliações quanto às medidas
afirmativas em políticas públicas para solucionar as iniquidades em saúde destas populações.

Nossa análise se aproxima da revisão sistemática realizada por Paim & Silva 4 , que atribui ao sentido etimológico de equidade em saúde um
contraponto às desigualdades socioeconômicas e as de saúde. Equidade em saúde aparece articulada aos princípios da universalidade e
de integralidade. Nos estudos desses autores, o princípio da universidade refere‑se ao direito universal à saúde, interpretado como sendo aquilo
que é comum a todos, tendo o Welfare State e a Conferência de Alma‑Ata (1978) reforçado sua incorporação em sistemas públicos de saúde. Já a palavra integralidade, dentro do marco legal brasileiro, refere‑se ao atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais 5 , ou
ainda à assistência em saúde, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema.

Na mesma linha argumentativa, Naomar Almeida 6 entende que o conceito de equidade utilizado no Brasil não tem sido compreendido em sua larga dimensão ética, social, econômica, política, pois tem sido empregado como equivalente àquilo que é injusto, levando a uma forte tendência de restringir direito universal e a equidade ao sinônimo de acesso a bens e serviços de saúde. Na sua visão, a retórica do “acesso”, utilizado como sinônimo de equidade, carrega em si um grande perigo, que é despolitizar a questão da saúde mediante a naturalização das disparidades na ocorrência de doenças e eventos relacionados à
saúde que afetam de formas diferenciadas grupos sociais e indivíduos.

Estas referências teóricas são importantes porque nos remete a interpretar o conceito de equidade em saúde que está no texto da PNSIPCFA. O mesmo não parece se restringir apenas ao acesso à política específica de saúde, mas às políticas públicas intersetoriais que possibilitem incidir sobre os fatores que determinam as condições de produção e reprodução de vida e saúde destas populações, como o acesso à terra e a permanência dos povos e comunidades tradicionais em seus territórios de pertencimento; a democratização e o uso sustentável dos recursos naturais, o acesso à moradia digna com saneamento básico que provenha água de qualidade para o consumo humano e a produção da segurança alimentar e nutricional; bem como a superação de todas as formas de violência e dominação baseadas na raça, gênero, etnia, geração, orientação sexual e crenças religiosas. Ou seja, um significado amplo de equidade em saúde que possa dialogar com a utopia identitária e societária dos movimentos sociais, de conceber a saúde como sinônimo de satisfação das necessidades humanas, de buen-vivir ou melhor viver, em contraposição ao malviver e ao mal desenvolvimento produzidas pelo avanço do capitalismo no espaço rural brasileiro.

Parecendo ciente do cenário de iniquidades que afetam as populações camponesas, extrativistas e de regiões aquíferas, e almejando dirimir as ambiguidades conceituais e políticas que giram em torno do debate sobre equidade, a estratégia proposta pelo Ministério da Saúde para implementação da PNSIPCFA nos estados e municípios é o incentivo à gestão participativa, à educação em saúde e à vigilância e promoção da saúde, como possibilidade de alcançar melhores e mais efetivos resultados 7.

EDUCAÇÃO EM SAÚDE PARA A PROMOÇÃO E VIGILÂNCIA EM SAÚDE

É possível articular as lutas populares e as pedagogias dos movimentos sociais com a educação em saúde no âmbito do SUS? Que diálogos, aproximações, interações entre saberes e práticas populares e técnico‑cientificas são necessárias para produzir novos conhecimentos e novas metodologias de trabalho em promoção e vigilância em saúde?

Numa revisão histórica das práticas de educação em saúde, Casotti 8 destaca duas fortes características. A primeira é a concepção de educação popular em saúde, que incorpora princípios da pedagogia de Paulo Freire, sendo ferramenta aliada dos movimentos sociais na luta pelo direito universal, integral e equânime na saúde enquanto parte estruturante de um projeto democrático e popular. A segunda, é a definição de educação permanente em serviço dada por L’Abbate 9 , de ser um “campo de práticas que se dão no nível das relações sociais normalmente estabelecidas pelos profissionais de saúde, entre si, com a instituição e, sobretudo, com o usuário, no desenvolvimento cotidiano de suas atividades”. Para Casotti 8 , tanto a ducação popular em saúde quanto a educação permanente, incorporam a intencionalidade de esenvolver processos educativos como ferramenta para capturar a realidade, problematizar e produzir mudanças estruturais, e por isto mesmo tornaram‑se, para além da prática, objeto de reflexão e de pesquisa. Ressaltamos ainda que grande parte das experiências de educação popular em saúde desenvolvidas no SUS ocorrem principalmente na atenção básica, e buscam romper com o modelo biomédico e as práticas tecnicistas que distanciam os trabalhadores dos usuários ‑ e o serviço de saúde ofertado da cultura opular. Estas concepções vêm ao encontro do componente educativo explícito no texto da PNSIPCFA e do projeto de formação de lideranças, gestores e trabalhadores que atuam com estas populações.

As experiências educativas realizadas com os movimentos sociais camponeses, extrativistas e das regiões aquíferas abriram possibilidades para se pensar a formação do profissional de saúde que atua junto a estes povos e populações. Possibilitou ainda a criação de espaços permanentes de diálogo, de debate e de reflexão entre os profissionais de saúde, e entre estes e a população, de maneira a melhor identificar as necessidades de saúde e o planejamento das ações, superando o caráter técnico, eventual e pontual que muitas vezes essas questões assumem na agenda de trabalho no SUS. Contribuiu ainda para romper com o modo tradicional dos programas dos cursos em saúde, que muitas vezes são acríticos, bem como para repensar o modo tradicional de organizar os serviços de saúde, sobretudo na vigilância em saúde, que exige do profissional e da população a capacidade de saber analisar e lidar criticamente com questões econômicas, socioambientais e culturais, desde a macroesfera produtiva à micro dimensão do cotidiano da vida comunitária e familiar. No caso do lócus em debate, entender e intervir em contextos e ambientes imersos em conflitos, tensões e disputas entre diferentes visões de desenvolvimento e de projetos societários. As pedagogias utilizadas e as atividades desenvolvidas pelo projeto propiciaram, além
da identificação de necessidades de saúde, a integração entre saberes e práticas tradicionais e técnico‑científicas, sobretudo nos locais onde os profissionais de saúde e as lideranças dos movimentos sociais construíram relações de diálogo e respeito mútuos. Questões como modelo de desenvolvimento, identidades e diferenças culturais, perfil e formação dos profissionais de saúde, interface entre as vigilâncias sanitária, epidemiológica, ambiental e do trabalhador, integração entre as redes de cuidado no
SUS, integração entre as políticas sociais, e empoderamento comunitário e mobilização social ganharam importantes dimensões no processo formativo.

A confluência de interesses entre a Fiocruz, os movimentos sociais e demais parceiros envolvidos na experiência, só foi possível porque, em seu projeto institucional, a Fiocruz concebe a educação em saúde como processo emancipatório para democratização do conhecimento, valorização das pessoas, valorização da diversidade e redução das iniquidades nas condições de vida e saúde. Visa ainda contribuir com um projeto de desenvolvimento nacional com redistribuição de renda e inclusão social. A vigilância em saúde aparece como estratégia de imersão nos territórios para agir sobre a determinação social a favor da promoção da saúde dessas populações, de forma participativa e engajada.

Foi possível também porque a pedagogia de educação em saúde utilizada pelos movimentos sociais ‑ CONTAG, MST, Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e Movimento de Luta pela Terra (MLT) – é a da educação popular em saúde, de caráter paulofreireana 10 , que tem por princípio o respeito às práticas de cuidado, a formação da consciência crítica das lideranças e o compromisso com a transformação social. Guia‑se pelos princípios e diretrizes da problematização da realidade cotidiana a partir dos sujeitos; desconstrução, busca de diferentes saberes e construção de novos conhecimentos; defesa do direito à saúde como direito humano; defesa da democracia e da participação social; amorosidade e compromisso com os ideários de igualdade e de justiça social, solidariedade na luta e valorização da identidade e cultura camponesa7.

Certamente que neste processo educativo também ocorreram tensões, divergências e contradições decorrentes dos marcos teóricos e metodológicos que definem a práxis e o lugar das práxis de cada um desses atores. De um lado, o saber emergente e emancipatório dos movimentos sociais, que atuam na esfera pública construindo lutas contra‑hegemônicas com questionamentos, pressões e demandas represadas. Por outro lado, o saber hegemonizante de gestores e trabalhadores do SUS que, por estarem dentro e representarem o aparato estatal, nem sempre se posicionaram abertos às críticas e à avaliação direta das ações públicas realizadas. A crítica mais frequente dos usuários em relação aos gestores e trabalhadores
do SUS é a falta de escuta sistemática no nível municipal, sobretudo por adotarem nos processos de trabalhos, inclusive na vigilância em saúde, concepções e linguagens técnico‑profissionais, fechando seus processos decisórios aos especialistas de saúde e da gestão pública. Esta problemática reafirma a necessidade de continuar investindo na realização de pesquisas sobre pedagogias e mediações socioculturais em educação, promoção e vigilância em saúde.

PROMOÇÃO E VIGILÂNCIA EM SAÚDE EM TERRITÓRIOS
As iniquidades em que vivem as populações do campo, da floresta e das águas têm causas estruturais decorrentes do avanço do capitalismo no espaço rural como já foi dito anteriormente. Mas há também responsabilidade dos governantes que historicamente não equacionaram as questões sociais que determinam o quadro de pobreza, fome, desigualdade e violência social que caracterizam o campo brasileiro. Notadamente, a situação agrava‑se a depender da conjuntura política e econômica do país. À medida que crescem as forças conservadoras no Executivo, Judiciário e Legislativo, crescem os ataques contra os direitos
dos camponeses, povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais, aumentando os conflitos étnicos‑raciais e de classe no espaço rural. Ao se aproximar a vigilância em saúde ao cotidiano de vida das populações e dos movimentos sociais do campo, da floresta e das águas, introduzindo práticas participativas, busca‑se incidir sobre a realidade dos territórios, sejam estes assentamentos da reforma agrária, agricultura
familiar camponesa, extrativismo, pesca artesanal ou comunidades tracionais. Cada um desses contextos possui características próprias e requer formas distintas de atuação e prática profissional.

As perspectivas das práticas de vigilância em saúde se colocam entre dois polos, um que parte da operacionalização de um modelo hegemônico de saúde e doença centrado em ações verticalizadas de controle de agravos que são tensionadas por uma vertente de dimensão mais ampliada; outro que fundamenta‑se nos princípios da Saúde Coletiva da Reforma Sanitária, de conceber a vigilância da saúde
como promotora de transformação social e de enfrentamento das desigualdades sociais, intervindo diretamente sobre os determinantes sociais de saúde ou socioambientais; priorizando atuar em territórios e em populações delimitadas, com ênfase em ações intersetoriais e setoriais de promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos, contribuindo para a reorganização da assistência médico‑ambulatorial e hospitalar em articulação com as necessidades de saúde da população11.

Estas questões nortearam o debate acerca das estratégias formativas a serem adotadas no projeto. Optamos por trabalhar com a concepção ampliada de vigilância em saúde, priorizando atuar sobre os problemas de base territorial, com ênfase em ações intersetoriais e de promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos, sendo a saúde do trabalhador e a saúde ambiental as subáreas da vigilância privilegiadas na experiência aqui analisada. A aproximação entre as políticas de saúde e outras políticas sociais – como moradia, saneamento básico, transporte público, segurança pública, educação do campo, agricultura ecológica e orgânica – foram reafirmadas como estratégia de incidir sobre a determinação social da saúde desses povos e populações. 

Destaca‑se ainda que, nos debates entre os profissionais de saúde e destes com a população, emergiu o entendimento de reforçar o papel das vigilâncias em saúde e da promoção da saúde no âmbito do SUS enquanto ação de saúde com potência para enfrentar as consequências que as crises econômicas, política, socioambiental, alimentar e hídrica provocam na vida das pessoas, comunidades, povos e populações. A matriz que estrutura o modelo de desenvolvimento vigente no país é a mesma matriz de produção e reprodução do modelo hegemônico de saúde, que concentra poder e saber nas mãos de grupos políticos e
econômicos em detrimento dos interesses da coletividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência analisada mostra que é possível estabelecer aproximações entre as lutas sociais protagonizadas pelos movimentos sociais e as ações públicas concebidas, planejadas e executadas nas instituições públicas de Estado, sobretudo quando a concepção de educação, promoção e vigilância em saúde assumem um caráter emancipatório, contextualizado, territorial, multidisciplinar e intersetorial. Esta aproximação, não ocorre, contudo, sem tensões, conflitos.

Guiar‑se por uma concepção ampla e sistêmica de saúde, pela imersão e visão de totalidade do território usado, desvendando e integrando múltiplos saberes e práticas de saúde, é um dos caminhos possíveis para se construir redes de solidariedade e de cuidados de forma cooperativa que possam melhor atender as necessidades de saúde dos povos e populações. Esses princípios continuam guiando o fazer pedagógico dos Cursos de Especialização em Vigilância, Trabalho e Ambiente, ampliadas na parceria entre a Fiocruz (PSAT/Escola Fiocruz de Governo), a Funasa (Departamento de Saúde Ambiental), Rede de Médicos e Médicas Populares e a Articulação do Semiárido (ASA) atualmente desenvolvido nos estados do Ceará, Pernambuco e Piauí.

As agendas dos movimentos sociais, ou mesmo as agendas internacionais pactuadas entre governos ‑ como a Agenda 2030 para se alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, aparecem também como portunidades para potencializar as políticas públicas e as experiências sociais locais, promotoras de bases para a construção de novos modos de vida social em contraposição à imposição de contextos e ideias globalizantes. Isto ocorrerá não sem disputas e tensões, e dependerá dos contextos e correlações de forças. Quiçá, assim, estejamos alçando voos para irmos além da mitigação do malviver rumo à construção de variadas formas de buen-vivir no campo, na floresta e nas águas a partir da realidade brasileira, inclusive entre os povos indígenas, numa perspectiva de territorialização saudável e sustentável.

 

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Author Biographies

  • Maria do Socorro de Souza, Fundação Oswaldo Cruz

    Mestre em Política Social (UnB). Doutoranda no NUTES/UFRJ. Professora‑pesquisadora em Saúde da Fundação
    Oswaldo Cruz. Gerencia Regional de Brasília. Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho.

  • Jorge Mesquita Huet Machado, Fundação Oswaldo Cruz

    Doutor em Saúde Pública (ENSP). Professor‑pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz. Gerencia Regional de
    Brasília. Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho. 

  • Antonia Sheila Gomes Lima, Fundação Oswaldo Cruz

    Especialista em Gestão Ambiental (UFRJ). Colaboradora na Fundação Oswaldo Cruz. Gerencia Regional de Brasília. Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho.

     

  • André Luiz Dutra Fenner, Fundação Oswaldo Cruz

    Doutor em Saúde Pública (ENSP). Professor‑pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz. Diretoria da Gerência
    Regional de Brasília. 

  • Gislei Siqueira Knierim, Fundação Oswaldo Cruz

    Mestre em Saúde Pública (ENSP). Colaboradora na Fundação Oswaldo Cruz. Gerencia Regional de Brasília. Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho. 

  • Virgínia da Silva Corrêa, Fundação Oswaldo Cruz

    Mestranda em Políticas Públicas em Saúde (EFG). Fundação Oswaldo Cruz. Gerencia Regional de Brasília. Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho. 

References

1 Brasil. Portaria nº 2.866. Institui a Política Nacional de Saúde Integral dos povos e populações do campo e da floresta, bem como seu respectivo Plano Operativo para 2012‑2015. 2011.
2 Bhabha H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG; 1998.
3 Tortosa JM. Maldesarrollo y mal vivir: pobreza y violencia a escala mundial. Quito: ed. Abya‑Yala; 2011.
4 Paim JS, LMV Silva. Universalidade, integralidade, equidade e SUS. BIS, Bol. Inst. Saúde (Impr.). 2010;12(2):109‑14.
5 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988.
6 Almeida‑Filho N. A problemática teórica da determinação social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento). Saúde em
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7 Brasil. Política Nacional de Saúde Integral dos povos e populações do campo e da Floresta. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de
Apoio à Gestão Participativa. 1. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2013.
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Published

2018-05-24

Issue

Section

Educação

How to Cite

1.
Educação, promoção e vigilância em saúde: integração entre saberes e práticas com movimentos sociais camponeses. Com. Ciências Saúde [Internet]. 2018 May 24 [cited 2024 Nov. 21];28(02). Available from: https://revistaccs.espdf.fepecs.edu.br/index.php/comunicacaoemcienciasdasaude/article/view/217

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