Inserção da agenda de Vigilância em Saúde Ambiental do Brasil no Contexto da Saúde Global

Authors

  • André Luiz Dutra Fenner Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
  • Aletheia de Almeida Machado Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
  • Guilherme Augusto Pires Gomes Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)

DOI:

https://doi.org/10.51723/ccs.v28i02.204

Keywords:

Saúde Global, Saúde Ambiental, Vigilância Sanitária Ambiental

Abstract

INTRODUÇÃO
É objetivo principal deste texto o entendimento da conceituação do termo Saúde Global, bem como sua ampliação por meio da inclusão de uma vertente ambiental, a da Saúde Ambiental. A articulação entre saúde global e saúde ambiental, segundo nossa análise, é de fundamental importância para atender, de forma propositiva, as inúmeras demandas e solicitações feitas à área de Saúde Ambiental no contexto da globalização. Assim, será possível qualificar o acompanhamento, a preparação e a implementação de ações de políticas públicas, tendo como referencial os processos de internalização de diversos compromissos internacionais e de Acordos Multilaterais
Ambientais (AMA, em inglês MEAs), negociados e assumidos pelo Brasil. Nesse sentido, este artigo visa a discutir questões ambientais globais que envolvem o setor saúde e que originam processos de tomada de decisões domésticos, em relação à implementação de AMA, relacionados à saúde das coletividades – inclusive daquelas
coletividades em que se observam maiores níveis de vulnerabilidade socioambiental.

O fortalecimento de conceitos previamente existentes e a criação de novos aparatos conceituais, bem como a formulação de teorias inovadoras, no campo das políticas públicas, propostas no bojo do processo de globalização do mundo contemporâneo, permitem a reflexão sobre a concomitância e a complementaridade das formulações de “territórios de práticas” de saúde ambiental e de saúde global. Tais desenvolvimentos conceituais e teóricos, que permitem a elaboração de novas proposições de políticas públicas, no âmbito da Saúde Ambiental e da Saúde Global, ocorrem no mesmo momento histórico e em determinada conjuntura sócio‑econômica‑ambiental. Essa concomitância histórica e de avanço do conhecimento em ambas as frentes nos permite pensar a complementaridade dos objetos teóricos sob análise.

Por um lado, a Saúde Ambiental leva em consideração a dimensão da saúde que se relaciona com o ambiente, qualificando este ambiente como um sistema complexo e hierarquizado de relações. Essas relações, por sua vez, permitem a existência e a dinamização de fluxos energéticos e sócio‑afetivos articulados, configurando um sistema sócio‑ecológico 1. Por outro lado, a complexidade da Saúde Global abrange diferentes regimes internacionais ambientais, culturais, econômicos, políticos e sociais que convivem num determinado território. Os regimes internacionais são definidos como princípios implícitos ou explícitos, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão nos quais a expectativa dos atores converge para uma determinada área das relações internacionais. Princípios são crenças de fato, nexo de causalidade e retidão. Normas são padrões de prescrição dirigidas à ação. Procedimentos de tomada de decisão são práticas em vigor para se tomar e implementar uma escolha coletiva 2. Em decorrência, esse território relaciona‑se com outros territórios, num mundo globalizado, interdependente, interconectado e diversificado, privilegiando as conexões desse emaranhado de elementos com a saúde. Nesse sentido, a Saúde Global é influenciada por um novo padrão intensivo de fluxos de recursos financeiros, humanos, comerciais e culturais, na medida em que esse novo padrão altera os perfis socioeconômico e políticos das populações, redimensionando, consequentemente, os perfis sanitários e de saúde globais.

Um bom exemplo da imbricação dos dois campos temáticos verifica ‑se na área de medicamentos, que incorpora e relaciona os interesses de diversos atores e setores político‑econômicos, no nível nacional e no internacional. A produção e a comercialização de medicamentos estão inseridas num regime de propriedade intelectual de patentes, que determina a disponibilidade e a possibilidade de uso dos medicamentos que variam de acordo com as condições socioeconômicas e o espaço político das populações humanas 3. Outro exemplo é a utilização dos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil, por parte dos cidadãos de outras nacionalidades e
países, nas regiões de fronteira ou regiões urbanas de recepção de imigrantes.

Os problemas ambientais confirmam a interdependência do mundo contemporâneo e a porosidade de suas fronteiras, uma vez que não se atém a espaços territoriais e políticos confinados, ultrapassando os limites dos Estados nacionais. Uma amostra disso é a problemática dos Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs) que são substâncias químicas perigosas, lesivas à saúde, bioacumulativas e de longo alcance, e que, ainda assim, são utilizadas na produção de várias mercadorias. Ao serem consumidas, geram resíduos que se fixam na cadeia alimentar dos diferentes ecossistemas, concentrando‑se nas regiões polares em função das características ambientais. Essa concentração determina a exposição a estas substâncias das populações ”inuítes” do Canadá e da Groelândia, levando ao comprometimento da saúde dessas populações 4 .

Em paralelo a essas influências mútuas, internamente o setor saúde tem participado cada vez mais dos processos decisórios, relacionados à internalização de compromissos ambientais, assumidos internacionalmente pelo país. Isso porque há uma proliferação de instrumentos e/ou acordos multilaterais ambientais que são capitaneados, em âmbito doméstico, pelos setores ambientais e diplomáticos, mas que vem sendo acompanhados, ativamente, pelo setor saúde. Essa participação é fundamental, uma vez que aqueles acordos lidam com elementos de peso para a determinação da saúde das populações. Entre os acordos e as agendas internacionais que estão sendo tratadas pela área de vigilância em saúde ambiental podemos citar: a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio e o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio; ; a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança; a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, chamada Cúpula da Terra ou Rio 92 e os documentos e conferências que se seguiram (Agenda 21, Rio + 10, Rio + 20) a Convenção de Roterdã sobre o Procedimento de Consentimento Prévio Informado (PIC) Aplicado a Certos Agrotóxicos e Substâncias Químicas Perigosas Objeto de Comércio Internacional; a Convenção de Estocolmo sobre os Poluentes Orgânicos Persistentes (POPS); a Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito a Convenção de Minamata sobre o Mercúrio (CMM); a Convenção‑Quadro das Nações Unidas sobre Mudança de Clima, o Protocolo de Quioto e os Acordos de Paris (CQNUMC); a Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção e Estocagem de Armas Bacteriológicas (Biológicas) e à base de Toxinas e sua Destruição (CPAB); a Convenção para Proibição de Armas Químicas (CPAQ); as Convenções da Organização Internacional do Trabalho No. 170 (Produtos Químicos) e 174 (Acidentes Industriais Maiores); e, mais recentemente, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que conforma a chamada Agenda 2030. Todas essas agendas também impactam de certa forma a saúde dos trabalhadores.

Esses acordos globais têm influenciado de forma clara e decisiva os processos técnico‑políticos de tomada de decisão no setor saúde. Podemos observar, ainda, no Brasil, repercussões desses processos internacionais, como por exemplo: a interdição de Cubatão, em 1993, logo após a realização da RIO‑92; a Criação da Comissão Nacional de Segurança Química (CONASQ), da qual o Ministério da Saúde exerce a Vice‑Presidência, que foi instituída após o Fórum Intergovernamental de Segurança Química (FISQ), realizado em Salvador, Brasil, em 2000; e a criação, em 2007, do Grupo de Trabalho do Sistema Globalmente Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos (GT‑GHS), após a ratificação, em 2004, pelo governo brasileiro, da Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes 5 .

É possível comprovar, dessa forma, que esses instrumentos afetam cada vez mais a definição da agenda política dos governos nacionais, tendo em vista que, para serem cumpridos, exigem dos Estados respostas e ações que modificam procedimentos e o próprio ordenamento jurídico. No setor saúde, uma das modificações mais evidentes está relacionada à formação de recursos humanos.

Este artigo está centrado na descrição e na análise de problemas decorrentes de diversos regimes internacionais 6 (clima, biodiversidade, químicos, etc.) e daqueles decorrentes do processo de construção de conhecimento por parte de uma comunidade epistêmica 7. Para Ruggie 8 , comunidades epistêmicas são:

[…] uma forma dominante de olhar para realidade social, um conjunto de símbolos e referências compartilhadas, expectativas recíprocas e previsibilidade de intenções
mútuas. Pode‑se dizer que as comunidades espistêmicas consistem em papéis interrelacionados, os quais se desenvolvem em torno de uma episteme; eles delimitam, para seus membros, uma construção adequada da realidade social (RUGGIE, 1975, p. 569).

Tais problemas trazem desafios para a formulação das políticas públicas nacionais que são as formas que o país detém de responder às demandas e aos compromissos, assumidos global e localmente. Isso porque os Estados membros desses regimes internacionais devem adotar diversas ações e estratégias para poder traduzir as normas internacionais em políticas públicas de Estado, com resultados efetivos para o bem‑estar de sua população. Naturalmente, há dificuldades inerentes a esses processos, devido às configurações dos interesses e das relações de poder de cada país, a estrutura institucional, o grau de visibilidade de cada questão, os interesses
específicos de diversas ordens mundiais, os atores envolvidos, as diferenças jurídico‑políticas, as ações e atividades de interesse público em geral pertinentes a estrutura da sociedade.

Conforme classificação do Fundo Monetário Internacional (FMI) 9 , grande parte dos países em desenvolvimento não possuem prioridades de Estado definidas e participam de forma não articulada de reuniões e de negociação, sem noção sobre os impactos que tais decisões trarão para os seus países, nos diversos setores envolvidos. Isso também ocorre no Brasil que ainda possui uma estrutura frágil de acompanhamento das agendas internacionais dos setores técnicos, com exceção
do Ministério de Relações Exteriores (MRE) que faz uma coordenação mais geral da política externa como um todo.

As dificuldades no entendimento de questões ecológicas, econômicas, políticas, tecnológicas, sanitárias e outras, decorrentes da formalização dos regimes internacionais e das interações no interior das comunidades epistêmicas trazem à tona a necessidade de formação e desenvolvimento de recursos humanos, estruturas formais e desenvolvimento conceitual e prático inovador dentro de uma área de formação específica.

 

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Author Biographies

  • André Luiz Dutra Fenner, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)

    Pesquisador em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Gerência Regional de Brasília, Brasília, DF, Brasil.


  • Aletheia de Almeida Machado, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)

    Pesquisadora Colaboradora, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Gerência Regional de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

  • Guilherme Augusto Pires Gomes, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)

    Pesquisador Colaborador, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Gerência Regional de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

     

References

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7 Keohane R. “The Demand for Internacional Regimes”, in International Organization. 1982: 36.
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Published

2018-05-24

Issue

Section

Saúde Coletiva

How to Cite

1.
Inserção da agenda de Vigilância em Saúde Ambiental do Brasil no Contexto da Saúde Global. Com. Ciências Saúde [Internet]. 2018 May 24 [cited 2024 Nov. 19];28(02). Available from: https://revistaccs.espdf.fepecs.edu.br/index.php/comunicacaoemcienciasdasaude/article/view/204

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